TIRADENTES

A nova face • 2014

Em 1955, Cecília Meireles iniciou a sua conferência na Casa dos Contos, em Ouro Preto, compartilhando uma assombrosa experiência: quando esteve nessa cidade, cerca de 15 anos antes, com um modesto intuito jornalístico de descrever a Semana Santa local, “todo o presente emudeceu como uma plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco”. Os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores.” Ela viu surgirem vigários, cônegos, mineradores, escravos e comendadores envoltos em suspiros, conspirações, traições e perseguições. “Era, na verdade, a última Semana Santa dos Inconfidentes: a do ano de 1789”. 



E continua a poetisa: “O sangue do alferes gritava, clamava – não a sua desgraça – mas a enormidade daquela tragédia desenrolada entre Minas e o Rio, forte, violenta, inexorável como as mais perfeitas de outros tempos, dos tempos antigos da Grécia, e que os helenos fixaram por escrito e que até hoje servem de alta lição para acabar de humanizar os homens. (...) eram vozes que falavam, que se confessavam, que exigiam o registro da sua história, que era uma história feita de coisas eternas e irredutíveis: de ouro, amor, liberdade, traições....” (MEIRELES, 1989, p 13-17)



Pelo respeito a essas vozes e assombrada por esses fantasmas, Cecília Meireles estudou, quase em completa solidão por 4 anos – que lhe pareceram curtos demais – cercada de livros especializados no século 18. Desse mergulho no passado, resultou o Romanceiro da Inconfidência cujos fatos e personagens relacionam-se à Conjuração Mineira. Considerada uma das obras primas da poetisa, o Romanceiro costura com maestria a Literatura, a História, a Geografia, as Artes e as Ciências de forma dramática, mas .... poética! Indispensável nas bibliotecas e nas mãos dos jovens ao construírem conceitos acerca da liberdade e dos direitos humanos, essa obra foi plantando ideias e desafiando a comunidade IEIJ a algo mais do que uma emocionada leitura. 



Para somar mais inquietações nesse ambiente, desde o ano 2000 o painel Tiradentes de Cândido Portinari passou a fazer parte dos estudos. Inicialmente, a obra foi uma encomenda para o Colégio de Cataguases (atual Escola Estadual Manuel Inácio Peixoto), em Minas Gerais. Essa edificação é um projeto de Oscar Niemeyer, construído em 1945, onde está uma réplica da obra de Portinari, pois a original foi vendida para o estado de S.P. e, atualmente, está exposta no Memorial da América Latina, onde foi vista pela coordenação pedagógica do IEIJ. O painel é um tríptico que apresenta 5 cenas expressando a força e a dramaticidade dos fatos traduzidas pela genialidade de Portinari. Para produzi-la, Portinari realizou pesquisas e estudos que, segundo Elza Ajzenberg, diretora do Museu de Arte Contemporânea MAC/USP: “Faz Arte e História num nível comparável às pesquisas de Joaquim Pedro de Andrade no filme Os Inconfidentes, e, à Cecília Meirelles (talvez a melhor amostra) no Romanceiro da Inconfidência”. No IEIJ, foi feita uma ampliação da foto e anualmente, próximo a 21 de abril, é apreciada e trabalhada pelos alunos que estudam os fatos históricos desse período da História do Brasil. 



No ano de 2009, outro livro importante nos foi apresentado pelo Dr. Lincoln para aprofundar o Estudo da Inconfidência Mineira no IEIJ. Era o livro Tiradentes Face a Face da Dra. Isolde Helena Brans, trazendo informações inéditas e instigantes sobre os conjurados. Este livro foi resultante das suas pesquisas e no ano de 1992, 2000 exemplares foram editados com o apoio e a cooperação da "Biblioteca Reprográfica Xerox do Brasil".



Contou-nos, a própria Dra. Isolde, em visita a convite do IEIJ, que “tudo conspirou para que realizasse a pesquisa.” Nascida em 21 de abril no estado do Rio Grande do Sul, quando muito pequena, entusiasmada, acordou cedinho no dia do seu aniversário para ir à escola, mas a mãe disse-lhe que naquele dia não haveria aula, pois era feriado. “ __ Feriado por causa do meu aniversário?!” E, à medida em que a mãe lhe explicava o motivo do feriado, a pequena Isolde ficou impressionada com a história de um jovem de Minas Gerais que tirava dentes e morreu enforcado, tendo seu corpo todo cortado porque queria um país livre. Uma pequena semente da sua brilhante pesquisa estava lançada... 



A jovem Isolde, então estudante de Artes, encontrou na Itália o advogado de Andradas-MG com quem se casou e foi morar em Campinas. Para auxiliar o esposo, fez o curso de Direito e, em um de seus trabalhos acadêmicos, precisou pesquisar sobre o Nascimento da Democracia no Brasil. Para isso, recebeu do marido a primeira versão dos Autos da Devassa para estudar a Conjuração Mineira. Seu aguçado olhar parou atentamente nas informações de que aquele jovem que tirava dentes havia ido para a Europa e indícios demonstravam que encontrou-se, na França, com Thomas Jefferson, o então embaixador dos Estados Unidos da América, já independente da Inglaterra. Provocada por tais informações foi até Lisboa verificar os cadernos de registro nos portos, e após exaustivas buscas, encontrou nos principais locais de entrada e saída da época no Brasil e em Portugal documentos que apresentam o nome de Joaquim José da Silva Xavier em datas e locais que reforçaram as suas conclusões: Tiradentes, era um jovem culto possuidor de esmerada educação. Falava francês e latim, conhecia a utilização das ervas e os procedimentos médicos da época. Como estadista apresentou à coroa portuguesa projetos de visível eficiência para a melhoria no sistema de distribuição gratuita de água no Rio de Janeiro, desembarcadouro de gados e depósitos de cereais nos portos. O inconfidente era conhecedor dos mais atualizados pensamentos acerca da liberdade e igualdade de direitos e encontrou personagens importantes envolvidas nas movimentações que delineavam o cenário político e econômico do mundo que herdamos hoje. 



Tendo comprovado as suas inferências, a Dra. Isolde foi convidada para divulgar suas ideias numa palestra em Brasília, na Casa Thomas Jefferson. Em 1993, nas Comemorações dos 250 anos de nascimento de Thomas Jefferson, um projeto da Library of Congress incluiu o Brasil no Seminário: "Thomas Jefferson and the Independence Movements in the Americas: The Case of the Conjuração Mineira in Brazil", realizado em 22 de setembro em Washington, onde a Dra. Isolde proferiu a palestra "Thomas Jefferson and the Vendek mission". 



Um tema que provoca incômodos



Iniciamos o ano letivo de 2014, com a ideia de que a liberdade enquanto uma complexa condição humana na sua relação com os indivíduos e com realidade requer esforço para que se concretize e se amplie. Os movimentos e as manifestações populares, frente a decisões governamentais deflagradas recentemente demonstram que a liberdade é uma conquista diária e o que o seu conceito abrange outras dimensões como a busca da identidade e da autonomia, diante da ditadura midiática que nos impõe padrões de comportamento e de consumo. Essas e outras situações, que envolvem os princípios dos direitos humanos, transcendem o aspecto individual e são, como nos ensina Cecília Meireles, a demonstração da “eternidade” da busca pela liberdade, pois a “conjuração não é somente uma palavra ocasional, local e circunstancial mas uma palavra de violenta seiva, atuante em qualquer tempo e lugar”(MEIRELES, 1989, p 13) 



O tema estudado, por meio da Cult, proporcionou aos alunos a contextualização e o aprofundamento na compreensão da dinâmica política e econômica, que envolveu, não somente àquela situação, mas outras já vivenciadas em outros tempos e que reverberam na atualidade provocando inquietude e insatisfação. De forma análoga, a Cult nos leva a refletirmos junto com os alunos a maneira pela qual a liberdade nos é privada na atualidade. Em contato direto com a Dra. Isolde, os professores receberam a “Oração do Menino Joaquim José”, um poema escrito por ela sobre a história da Inconfidência. A proposta do estudo sobre o assunto foi lançada aos alunos após a apresentação do poema, por todos os professores, sob a forma de jogral. O entusiasmo dos professores e a promessa de dar a ‘vida pela liberdade do Brasil’, conclamada pelos heróis do passado, ecoaram nos corações jovens e inquietos dos nossos alunos. Nesse ambiente, toda a comunidade escolar estava envolvida em descobrir e expressar como a insatisfação e a ousadia de 12 jovens estadistas protagonizaram a Inconfidência Mineira. 



Todas essas informações, o desejo de saber mais e “o clamor das vozes” escutadas pela poetisa, também ouvidas pela Escola, deflagraram na encenação que ora apresentamos. 



As estações



A encenação é um recurso pedagógico extremamente rico. É uma “vivência”, uma “experiência”. Envolve não só os aspectos intelectuais e de raciocínio, como também a expressão oral, dicção e o volume da voz, desenvolvimento da capacidade respiratória e impostação da voz, a leitura e a escrita, os movimentos, a postura corporal e o deslocamento no espaço, as emoções e os sentimentos. As emoções são “a cola da memória”, dizia Dr. Lincoln. Tudo o que é adquirido com emoção e sentimento não é esquecido. Escolhemos a encenação como forma de aprendizagem da nova história da Tiradentes para que os professores, os alunos e os pais nunca mais se esqueçam dela, e transmitam esta verdadeira História às futuras gerações.



Sob a direção geral do coreógrafo Wagner Rosa, os ensaios possibilitaram aos nossos alunos de 6 a 18 anos (2º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio), o desenvolvimento da inteligência e das competências por meio da dramatização e interpretação. Foi possível observar, neste processo, que muito jovens encontraram a sua força e conquistaram a independência de seus pequenos temores. 



A Encenação foi dividida em 5 atos e cada ato recebeu o nome de ‘estação’. Após o término da encenação, foi acrescentado mais uma, idealizada pelo designer gráfico Bernardo Faria, na qual foram apresentadas instalações sobre o tema “Movimentos populares na História do Brasil”, “Movimentos Populares na atualidade”, que consistiram numa seleção de imagens referentes aos temas. Encerrando todo o trabalho, na pequena área externa conjugada à sala das crianças de 3 anos, foi organizado um ambiente de escritório com móveis do século XIX, apresentando a bibliografia consultada e, nas paredes, representações em grafite, dos principais historiadores e mentores do trabalho.



A ideia das estações, resultante do hibridismo da Via Sacra e das cenas do painel de Portinari, foi tomando forma. O texto foi composto pelos professores após exaustivas leituras e pesquisas em livros, nas infindáveis páginas dos Autos da Devassa e em filmes relacionados ao tema. As falas dos personagens foram extraídas dos documentos não sendo necessária a ‘invenção’ de nenhuma. O roteiro foi tomando vida na voz dos alunos que escolheram, candidataram-se aos papéis e incorporaram a luta e os ideais de liberdade e igualdade. Como que ungidos pelo sangue dos inconfidentes clamaram por justiça e bradaram suas vozes em busca da democracia, resgatando parte da história da nossa Nação. 



A nosso convite Dra. Isolde veio a Londrina conhecer o trabalho que realizávamos e, deslumbrada, compartilhou a sua saga em busca da verdadeira história de Tiradentes que deixou de ser um idealista alucinado e inconsequente que foi traído e enforcado e passou a ser um estadista extremamente culto e visionário que deu a sua vida pelos seus companheiros. Sua frase: “Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria para salvá-los”, foi contextualizado e compreendido. A palestra da Dra. Isolde despertou também nos pais a curiosidade e a alegria do conhecimento e a Rádio Universidade (UEL) a entrevistou e, nas palavras de uma pesquisadora emocionada, divulgou o trabalho dos nossos alunos. 



A encenação ocorreu em duas noites no ambiente externo da Escola, ocupando desde a quadra até o hall de entrada no pavimento da Educação Infantil. A escuridão e as luzes conferiram maior dramaticidade ao trabalho que enriqueceu e contribuiu com o objetivo da Escola em educar e humanizar nossos jovens em busca da “vida, liberdade, do amor, da segurança e da felicidade...”